“É importante que o setor imobiliário valorize a biodiversidade nativa no paisagismo e a restauração do verde urbano. Essa é a cidade do futuro.”
em Valor Econômico, 4/abril
Entrevista | Ricardo Cardim, sócio-fundador da Cardim Arquitetura Paisagística
Nascido e criado em Moema (um dos bairros mais verticalizados da capital paulista), Ricardo Cardim sempre gostou de interagir com a natureza. Uma das maiores referências do Brasil quando o assunto é recuperação de mata nativa nas cidades, o botânico de 46 anos comanda um escritório com 40 profissionais e mais de 200 projetos pautados na ciência e na valorização da fauna e flora brasileiras. Nesta entrevista, ele debate o papel das incorporadoras e do poder público na preservação do verde urbano.
Quando surgiu o interesse pela botânica?
Ricardo Cardim — Desde que eu conheço por gente. Minha mãe sempre disse que meus brinquedos preferidos eram as plantas e as flores. Na escola, brincava no jardim e voltava para casa com os bolsos cheios de sementes. Nasci gostando de árvore na selva de pedra que é São Paulo.
O que é a “Floresta de bolso” que você oferece no escritório?
É uma das ferramentas que compõem um paisagismo mais amplo, que inclui escolha das espécies, materiais e mobiliário. Ela busca recuperar a mata nativa dentro dos projetos, como o Pomar Indígena, que promove o plantio de árvores frutíferas brasileiras no ambiente.
Como esse conceito foi recebido pelo mercado?
Quando abri o escritório, em 2016, era algo novo e impensável. Aos poucos, o mercado foi entendendo que trazia benefícios, como baixo consumo de energia, e era um diferencial de vendas. Diversos empreendimentos passaram a valer o dobro por ter uma “floresta”. Mostramos que o paisagismo também pode ser o protagonista do projeto, não só a arquitetura.
Qual é o papel das incorporadoras na recuperação do verde urbano?
O mercado privado tem capacidade e velocidade de ações diferentes das do poder público. O setor pode trazer a biodiversidade nativa de volta e adotar um paisagismo sustentável de forma rápida. Eu acredito muito na iniciativa privada, mas ela sozinha não vai resolver os problemas.
É muito importante que o setor imobiliário continue valorizando a biodiversidade nativa no paisagismo e a restauração de florestas remanescentes na área urbana, inspirando o poder público e mostrando que essa é a cidade do futuro.
Falta ação por parte do poder público nesse sentido?
Há muito o que fazer em termos de políticas públicas. Vejo omissão e falta de vontade política. As pessoas atacam muito o mercado imobiliário, mas falam muito pouco do poder público.
E eu não o vejo engajado no objetivo de renovação ambiental. Não dá mais para continuar tratando assim o verde urbano: é como um computador, precisa reiniciar o sistema. O mundo mudou, e fazer mais do mesmo não dá mais.
Quais medidas administrativas poderiam ser tomadas?
A criação de uma secretaria exclusiva para manutenção e plantio de árvores na cidade, com capital humano, capacidade financeira e equipamentos adequados para cuidar do verde. Um órgão federal que fiscalize vegetação nos municípios brasileiros. E uma “Embrapa” voltada ao paisagismo e à arborização, que pesquise as espécies nativas que devem ser replantadas nas nossas cidades, gerando resiliência climática e conexão da população com um patrimônio ancestral nativo.
Esse tema deveria ser mais debatido no mercado imobiliário?
É um caminho sem volta. Primeiro, vivemos em um momento de estresse ambiental. Concorde-se ou não, existem coisas muito importantes acontecendo com o clima — tanto globalmente, quanto na esfera das cidades — pela falta de verde, o que vem afetando a vida das pessoas.
O meio ambiente e o impacto das mudanças climáticas nas cidades são temas urgentes para o país, sobretudo porque nove de cada dez brasileiros vivem em centros urbanos. Mas ainda há a percepção de que a vegetação nas cidades é muito mais uma decoração ou um problema quando uma árvore cai, do que uma solução imprescindível para o atual desafio climático que vivemos.
O que mais te preocupa quanto ao paisagismo praticado hoje?
A questão da perda da biodiversidade nativa. Temos o privilégio de viver em um país com a biodiversidade mais rica do mundo, com a maior quantidade de espécies de bichos e plantas de todo o planeta. Mas isso tem sido desconsiderado por muitos paisagistas quando escolhem o tipo de vegetação para aplicar nos projetos: hoje, 90% das espécies usadas são estrangeiras, o que gera problemas ecológicos e culturais. Não faz o menor sentido.
Que tipo de problemas?
Quando você traz espécies invasoras, deixa de dar alimento para a fauna local, e isso interfere na recomposição da flora. A Mata Atlântica, por exemplo, tem 80 milhões de anos e comporta um acordo milenar entre os animais e a vegetação. As plantas dão abrigo e comida aos bichos que, em troca, polinizam e semeiam, ajudando na perpetuação da floresta. É uma troca que tem sido interrompida pela presença dessas espécies estrangeiras. Isso causa um imenso prejuízo ao equilíbrio do meio ambiente, levando até a extinção de plantas nativas a médio e longo prazos.
Você é muito ativo nas redes sociais. Qual o objetivo das postagens?
Isso começou um ano atrás. A gente vive em um mundo de opiniões, muitas vezes equivocadas, e eu busco trazer mais ciência para o debate. Tinha feito o livro, mas ele teve abrangência limitada e, por influência de um amigo, decidi fazer postagens nas redes sociais sobre aquele conteúdo, mas de um jeito mais fácil e abrangente para as pessoas compartilharem. É o lado bom das redes: ter acesso a diferentes pessoas e em diferentes lugares. Comecei a fazer e o resultado foi surpreendente.
Como funciona: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça?
Eu tenho uma agenda muito ocupada por conta do escritório, e a premissa era de que a produção dos conteúdos não inviabilizasse meu tempo. Então, pego o celular e falo 90 segundos de um tema que eu julgo importante e publico, sem edição. Para gastar 15 minutos do dia. E deu certo: as pessoas têm compreendido e se engajado no debate. Saí de 25 mil para 130 mil seguidores orgânicos.
Ver online: Valor Econômico