’Clientes se sentem mais seguras’: quem são as mulheres que estão ganhando dinheiro e respeito na construção civil
em Marie Claire, 13/abril
Em um mercado majoritariamente masculino, as ’’maridas’ de aluguel’ conquistam espaço oferecendo serviços de reparos com segurança a outras mulheres. A Marie Claire, as profissionais contam que, mesmo com avanços, ainda enfrentam desvalorização e preconceito por seu gênero.
Em um mercado dominado por homens, muitas mulheres estão encontrando um nicho para ganhar dinheiro. Elas oferecem serviços de consertos e reparos e são conhecidas como “maridas de aluguel”. Eficientes e confiáveis, elas assumem a promessa de criar um ambiente mais seguro para outras mulheres.
Marie Claire conversou com três profissionais da área, que contaram suas experiências e os desafios trabalhando em um espaço em que, muitas vezes, são desvalorizadas.
’Sempre gostei da área’
Foi buscando trazer mais diversidade à engenharia civil que surgiu o Manas à Obra, empresa de construção, reforma e automação residencial feito pelas mãos de mulheres e LGBTQIAPN+. A criadora do empreendimento, Priscila Vaiciunas, 40, teve a ideia em 2015, quando estava desempregada.
“Eu sempre gostei da área, quando criança ficava em cima toda vez que tinha reforma em casa. Meu pai fazia pequenos reparos para vizinhos e eu também o acompanhava para ajudar”, conta, em entrevista.
Na adolescência, a paulistana fez um curso técnico em Edificações, onde aprendeu sobre planejamento e construção de edifícios, estruturas e infraestruturas. “Me apaixonei mais ainda pela área e ali nasceu a vontade de ter uma empresa com mão de obra de mulheres.”
Depois de muitos anos atuando na linha de frente, ela decidiu fazer uma transição importante. Há cerca de um ano, deixou a operação diária para se dedicar ao gerenciamento das obras, mas nunca abandonou completamente o atendimento como “marida de aluguel”.
“Hoje minha rotina é mais tranquila. Estou mais voltada para orçamentos, compra de materiais, gerenciamento de serviços e atendimento via redes sociais. Mas ainda gosto de atender clientes de vez em quando, porque me lembra de onde eu vim. Em dez anos de existência [da empresa], somente a partir de 2024 que passei a priorizar minha saúde emocional, descanso, lazer, e limites de trabalho”, revela.
Apesar da longa trajetória e do sucesso conquistado, a desigualdade de gênero ainda é um obstáculo. “Hoje meu maior desafio é conseguir valorização financeira, muitas vezes ainda sinto que por ser mulher, as pessoas ainda querem barganhar ou pedir descontos, como se meu conhecimento e trabalho não tivessem o mesmo peso e valor do que o mesmo praticado por um homem.”
Ela explica que esse tipo de comportamento está enraizado em práticas do próprio mercado. “Tem muito profissional que age de má-fé com clientes mulheres, cobra mais caro, inventa serviço desnecessário. Isso gera uma reação de desconfiança em cadeia. Geralmente lido de forma irônica, conto umas histórias e sigo em frente.”
’Muitas me contratam por se sentirem seguras’
Gil Fernandes, 38, começou na área apenas ajudando amigas próximas, mas viu o hobby virar uma carreira e uma mudança de vida. Durante o início da pandemia de COVID-19, ela passou por um episódio profundo de depressão. Foi o trabalho que a ajudou a se recuperar: “Minha profissão salvou minha vida. Abandonei completamente minha antiga carreira, sou formada em Secretariado Executivo, e trabalhava com gerenciamento de comércio. Hoje, não me vejo fazendo outra coisa. Acordo todos os dias grata por poder viver do que amo.”
A grande inspiração para seguir esse caminho vem de duas experiências marcantes: a força da mãe e um episódio de assédio na adolescência. “Minha mãe sempre teve ferramentas em casa, fazia o que podia sozinha. Ela era mãe solo e me dizia que a gente, como mulher, precisava aprender ao menos o básico para não depender de homem. Então, desde nova, fui aprendendo a colocar a mão na massa”, conta.
Na adolescência, ajudou com mão de obra na construção da casa da mãe. Foi ali que começou a observar e aprender com pedreiros e outros profissionais. Na mesma época, passou por um episódio traumático com um montador de móveis. “Ele veio montar um armário de cozinha e acabou me assediando. Não aconteceu nada mais grave, mas isso despertou algo em mim.”
“De lá pra cá, eu tentei aprender tudo o que podia para não precisar contratar homens. E, quando era necessário contratar para trabalhos mais elaborados, eu sempre fazia questão de ter alguém comigo, para não ficar sozinha ao receber prestadores”.
Para ela, um dos principais obstáculos foi a desvalorização do trabalho por ser mulher. No início, precisou cobrar menos do que os colegas homens para conseguir os primeiros clientes. “Não podia praticar os mesmos valores. Além disso, em lojas de materiais de construção ou de tintas, sempre me tratavam como se eu não soubesse o que estava fazendo. Já recebi ‘aulas’ não solicitadas sobre produtos, mesmo sabendo exatamente o que precisava comprar.”
Com o tempo, os desafios mudaram. Hoje, os principais são os de qualquer empreendedora: equilibrar custos, prazos e clientes. “Mas melhorou bastante. Já tenho um nome no mercado, uma carteira sólida de clientes e muitas indicações.”
Gil afirma que além da técnica e da eficiência, o grande diferencial está no acolhimento e na confiança que ela transmite, especialmente para mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. “Já ouvi histórias pesadas de clientes que sofreram assédio com prestadores de serviço. Hoje, muitas me contratam justamente por se sentirem seguras. Mães solo, por exemplo, podem sair tranquilas de casa sabendo que estou com suas filhas adolescentes. Casais LGBTQIAPN+ se sentem menos vulneráveis.”
’Aprendi a respeitar meus limites’
Priscilla Matos, 46, é uma das representantes da profissão em Florianópolis, Santa Catarina. Tudo começou em 2016, quando recebeu uma sugestão da sogra para virar “marida de aluguel”. A ideia parecia brincadeira, mas serviu perfeitamente para ela. “Aquilo ficou na minha cabeça, porque eu sempre fui de ajudar os outros em mudança, consertar alguma coisa. Eu já tinha noção de elétrica, hidráulica, essas coisas básicas”, lembra.
Em um jantar de família, sua cunhada deu o empurrão final: criou uma logo, uma página no Facebook e, foi assim, que nasceu sua página “Marida de Aluguel”. Os cartões de visita foram distribuídos nos condomínios e a divulgação começou no boca a boca. “Um indicava aqui, outro ali e quando vi, o negócio andou sozinho”.
Nos primeiros anos, Priscilla ainda conciliava a nova função com o trabalho CLT como monitora de transporte escolar. Com a chegada da pandemia e a suspensão das aulas, ela perdeu o emprego — porém seu empreendimento engatou. “Começou o home office, as pessoas querendo arrumar escritórios, consertar coisas em casa e aí bombou. Percebi que o negócio dava certo.”
“Eu saía para trabalhar sem hora certa pra voltar, sem aquela correria. Era só uma questão de me organizar. E é algo que eu amo, porque não tem rotina. Cada dia estou numa casa diferente, converso com pessoas diferentes, vivo histórias diferentes. É muito gratificante.”
Por outro lado, ela não esconde os desafios físicos. “Aprendi a respeitar meus limites. Já tive situações em que o corpo gritou: “Não está dando!”. Atualmente, ela foca nos pequenos reparos como trocar chuveiro, instalar TV, cortina, torneiras e tomadas. “Nada de telhado, pintura ou serviço de pedreiro. Afinal, já tô com 46 anos”, brinca.
Como mulher numa área ainda dominada por homens, ela já viveu muitos episódios de desconfiança. “Chegava na casa da cliente e o marido vinha perguntar: ‘Tu sabe fazer isso mesmo?’ E eu lá, tendo que provar tudo”. São situações que hoje ela tira de letra. “Um desses caras virou meu amigo. Diz que eu salvei o casamento dele”.
Apesar dos obstáculos, ela acredita que ser mulher é seu maior diferencial. “Temos mais cuidado com limpeza, capricho no ambiente e atenção. As clientes se sentem mais à vontade para conversar, contar das suas vidas. Já com homens, muitas vezes elas se sentem inseguras. Tem homem que mal ouve um ‘oi’ diferente e já acha que a mulher tá dando em cima. Isso é cansativo”.
Essa empatia atrai um público específico atrás dela: 90% são mulheres. “O restante são homens gays ou héteros que moram sozinhos. Muitos são estudantes que vieram de fora estudar na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e não sabem trocar uma lâmpada. Já ouvi relatos do tipo: ‘Chamei um cara e ele ficou rindo de mim. Aí chamei você e ainda me ensinou como fazer”. É outro tipo de atendimento”, relata.
“Tenho clientes que me deixam a chave da casa, me passam a senha. Confiam de verdade. Tem cliente que tá tomando banho quando eu chego, e a gente conversa de boa, grita do banheiro mesmo! Porque sabem que sou mulher, que não tem assédio, não tem invasão. Isso faz toda a diferença”, finaliza.
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